top of page

Os Dias da Criação

Quando a gente fala de fósseis, ou mesmo de geologia, não tem como: cedo ou tarde se esbarra na questão das idades dos mesmos, e a maior parte dos cientistas afirmam: nosso planeta é muito antigo. Ele tem não apenas alguns milhares de anos, mas milhões de anos. Porém, isso parece entrar em conflito diretamente com os primeiros capítulos de Gênesis, considerado um dos pilares do Cristianismo, pois nele há a afirmação que Deus fez o mundo em apenas 6 dias, ou seja, supostamente, como diz no trecho da música do compositor evangélico Lito Atalaia, Deus "fez em menos de um mês, em uma semana, o mundo existir". Então, como o cristão deve lidar com isso? Essa "semana da criação" é literal ou figurada?

Antes de mergulharmos na questão, é importante conhecermos um pouco das principais vertentes dentro do cristianismo girando em torno da questão desses "dias criativos":

Criacionismo da Terra Jovem: Este defende que os Dias da Criação teriam sido literais, ou seja, de 24 horas cada. Alguns ainda admitem que o universo pode ter sido antigo, porém em qualquer caso a vida não teria milhões de anos, mas sim uma idade bem mais recente. Portanto, este modelo descarta totalmente a geocronologia e a chamada "filogenia evolutiva". Para sustentar esta interpretação do Gênesis, os defensores dessa ideia recorrem ao chamado "Criacionismo Científico", um modelo que procura "reinterpretar" os dados científicos à luz da Doutrina da Terra Jovem.

Criacionismo da Terra Antiga: Embora existam vários tipos de "Criacionismo da Terra Antiga", a similaridade entre eles é que todos defendem a vida na Terra tendo milhares, milhões ou bilhões de anos de idade. A variação gira em torno dos Dias da Criação, dentre os quais temos a "Teoria Dia-era", que defende que o termo "Dia" em hebraico em Gênesis 1 deve ser interpretado como "eras geológicas", "Teoria Dia com Eras alternadas" onde entre cada Dia da Criação teve intervalos de eras alternadas, "Teoria da lacuna", que defende que entre Gênesis 1 e 2 houve uma era não mencionada na Bíblia (Gênesis 2 em diante, no caso, falaria sobre uma recriação). e a "Teoria dos Dias Análogos", onde o texto se refere de fato a "dias de 24 horas", porém como uma figura de linguagem para se referir a "dias no tempo de Deus", indicando uma interpretação similar à do Dia-era.

Diante dessas vertentes, vamos fazer uma análise da questão, onde primeiro iremos tratar da questão bíblica, sem entrar na ciência - que deixaremos para o final do artigo.

É importante destacar que, neste texto, não entraremos na questão da evolução, mas sim tão somente acerca da questão da duração dos dias de Gênesis. Em relação a controvérsia criação vs. evolução, falaremos disso em um futuro artigo.

Como foi o entendimento original de Gênesis 1?

Nachmanides, rabino considerado uma grande autoridade em Talmude no Judaísmo

Para entendermos sobre quanto tempo duraram os Dias da Criação, é importante tentarmos ver a maneira que as primeiras pessoas que tiveram acesso ao texto entenderam ele, pois a princípio a Torah - o "Antigo Testamento" - foi direcionada ao povo hebreu. Sendo assim, nada mais justo do que conhecermos como de fato o Judaísmo entende o contexto dos Dias da Criação.

A primeira coisa que temos que olhar nesse aspecto é o calendário hebraico. O ano judaico é figurado pela soma das gerações desde Adão, mas... ele não começa a contar a partir dos dias da criação. O marco zero (ano novo judaico) na verdade é a partir do Sopro Divino em Adão, ou como os judeus definem, a Criação da Alma Humana. Nós começamos a contar os anos do calendário judaico a partir da criação da alma de Adão.

Temos, então, um relógio que começa com Adão, e os seis dias são separados a partir deste relógio. Sendo assim, é conciso dizer que a Bíblia tem dois relógios!

Isso pode parecer até uma interpretação recente visando "harmonizar a Bíblia com a ciencia"... se não fosse pelo fato disso ser comentado há 1500 anos atrás por erúditos judeus!! Em uma parte do Midrash (Vayicrá Rabá 29:1), uma parte do Talmude (livro de códigos do Judaísmo), fica evidente que todos os sábios que o escreveram concordam que o Ano Novo Judaico comemora a criação da alma em Adão, e que os Dias da Criação estão separados...

Mas aí vem, com isso, a pergunta que não quer calar: Por quê os Seis Dias são tirados do calendário judaico? De acordo com os erúditos judeus, porque o tempo é descrito de maneira diferente nesses seis dias de Gênesis. Eles admitem que "Houve tarde e manhã" é uma estranha maneira exótica, incomum de descrever tempo, e que igualmente incomum é o fato de que na contagem de Gênesis 1 os dias aparecem sem o artigo definido no texto original em hebraico ("e foi tarde e manhã, dia terceiro" ao invés de "e foi tarde manhã, o dia terceiro"). Além disso, como veremos mais adiante, a descrição "tardes e manhãs" é curiosamente usada também para descrever dias proféticos em Daniel 8:14...

Sendo assim, na tentativa de compreender o fluxo do tempo aqui, você tem que lembrar que os seis dias são descritos em 31 frases no original hebraico. Não espere que por uma simples leitura dessas frases que você vai saber todos os detalhes que são realizados dentro do texto... É óbvio que temos que "cavar mais fundo" para obter as informações. Isso é analisar o contexto bíblico, ainda mais porque no Talmude (Chagiga, cap. 2) é dito que a partir da frase de abertura da Bíblia, até o início do capítulo dois, o texto inteiro é dado em forma de parábola, um poema com um texto e um subtexto. Agora, vamos nos colocar na mentalidade de 1500 anos atrás, época do Talmude. Por que o Talmude diz que foi uma parábola? Você acha que há 1500 anos eles achavam que Deus não poderia fazer tudo em 6 dias? Era um problema para eles? Temos um problema hoje em dia com dados de cosmologia e científicos. Mas há 1500 anos, qual é o problema com 6 dias para um Deus infinitamente poderoso? Sem problemas.

Assim, quando os judeus "excluíram" esses seis dias do calendário, não era porque eles estavam tentando harmonizar a Bíblia com quaisquer teoria evolucionista ou algo parecido... O fato é que o texto não deve ser lido de uma maneira rasa. Para os erúditos, Gênesis 1 traz um relato muito mais extraordinário do que realmente parece.

O mais curioso ainda é que na própria Bíblia existe indicativos disso, e vindo de ninguém mais ninguém menos que o próprio Moisés. Em Deuteronômio 32:7, em seu discurso de encerramento, Moisés diz que para ver as impressões digitais de Deus no universo, devemos "Lembrar-nos dos dias antigos, e nos atentar para os anos das gerações sucessivas". O que Moisés quis dizer com isso? De acordo com o rabino Nachmânides, considerado uma grande autoridade no Judaísmo no que diz respeito ao Talmude, Moisés nesse texto está "quebrando o calendário" em duas partes - os dias antigos e os anos das gerações sucessivas - , onde os "dias antigos" são os Seis Dias da Gênesis, enquanto que “ Os anos de gerações sucessivas” é o tempo de Adão para frente. Moisés, nesse caso então, diz que você pode ver impressões digitais de Deus sobre o universo ou nos Seis Dias da Criação ou em seus atos e poder manifestos nas gerações após Adão. Um indicativo claro de que Moisés também considerava os Dias da Criação como um "calendário a parte"!

O Tempo de Deus

Então já sabemos que quando o calendário judaico diz que, por exemplo, estamos mais ou menos no ano 5700 ou mais, é preciso acrescentar a isso "mais seis dias". Mas, embora isso venha indicar algo bastante diferente do que é promulgado pelo Criacionismo da Terra Jovem - e o melhor, sem tocar em momento alguma na "parte científica", - ainda não está claro como os Judeus entendiam esses Dias.

No Salmo 90:4, composto por Moisés, está escrito: "Ante Ti [Deus], 1.000 anos são como 1 dia que passou, como uma vigília noturna". Esse texto indica que a perspectiva de tempo do Criador é diferente, ou seja, que o tempo de Deus não é igual ao nosso. Em 2 Pedro 3:8 também é dito que "mil anos pra Deus são como um dia". Aqui o texto reforça, mais uma vez, a ideia de que o Senhor não é dependente do nosso tempo, conhecido como Kronos, pois se para nós algo demora a acontecer, para Ele não. Tudo virá no seu tempo determinado. Se achamos que algo está demorando a acontecer é porque Ele está sendo longânimo e misericordioso, para que mais alguns possam usufruir de Suas bênçãos e da Bênção maior – a Salvação. O tempo de Deus é, comumente, chamado de Kairós. E embora esses versículos não estejam contextualmente remetendo aos Seis Dias da Criação, é importante como "pontapé inicial" para entendermos a visão judaica original acerca desses Seis Dias.

Inicialmente, é importante ver o entendimento a respeito da palavra "dia" para o povo judeu. O termo hebraico Yohn, é admitido por ter vários significados além de apenas "dia de 24 horas". Muitos criacionistas da Terra Antiga se apóiam exatamente nisso e argumentam que o sentido dessa palavra não se refere a dias de 24 horas. Mas o problema é que, gramaticalmente, Gênesis 1 traz Yohn como se referindo, realmente, a "dias literais". De acordo com a gramática hebráica, a palavra Yohn, sozinha, não define o seu sentido específico. É preciso ver o contexto, assim como existe diferença entre "tomar coca-cola" e "tomar um ônibus", onde a palavra "tomar" tem dois claros significados. E sobre a palavra Yohn, quando vem acompanhada de um numeral ordinal – essa é uma regra da língua hebraica (Charles Caldwell Ryrie, ThD, PhD) – como: dia segundo, terceiro..., deve ser, obrigatoriamente, identificada como se referindo a um "dia literal" e não um período maior de tempo.

Parece que encontramos um beco sem saída na situação... Será então que o entendimento da passagem correto é o de que cada Dia Criativo durou 24 horas? Não exatamente... Acontece que o fato dos dias criativos serem literais no livro de Gênesis não significa que sejam dias no tempo humano... afinal, lembre-se de que os Dias de Gênesis estão num "relógio" a parte na contagem do calendário judaico... Em outras palavras, o escritor original de Gênesis pode ter se referido a esses dias como não no tempo do homem, mas no tempo de Deus, ou "Dias de 24 horas no Tempo de Deus", em Kairós.

Mas claro, isso não quer dizer que cada Dia da Criação seria igual a mil anos, porque o texto de Salmo 90:4, por exemplo, não se refere a "mil anos é como um dia" no sentido de igualdade, mas no sentido de equivalência. Ou seja, o relógio "Kronos" é diferente do de "Kairós" e sequer podem ser nivelados. Para Deus, um dia em Kairós pode durar 1 minuto em Kronos ou 160 milhões de anos em Kronos...

'E houve tarde e manhã"

Se os judeus entendiam esses dias como no Tempo do Criador, isso faz o completo sentido quando vemos que eles possuem a tal divisão do calendário. Mas será que os judeus entendiam esses Dias como no tempo de Deus? E se sim, por que o texto usa a figura de "Dias de 24 horas" ao invés de dizer "milhões ou bilhões de anos", ou "cinco segundos"? Mais uma vez, vamos dar uma espiada no Talmude.

O Talmude, em Chagiga capítulo 2, na tentativa de compreender as sutilezas da Torah, analisa a palavra choshech, que refere-se as "trevas sobre a face do abismo". Quando a palavra choshech aparece , em Gênesis 1:2, o Talmude explica que isso significa "fogo negro", a 'energia negra", um tipo de energia que é tão poderosa que você não pode sequer vê-la. Dois versículos depois, em Gênesis 1:4, o Talmude explica que a mesma palavra - choshech - , quando diz "Deus separou a luz das trevas", significa escuridão , ou seja, a ausência de luz. Outras palavras também não são para ser entendidas por suas definições comuns. Por exemplo, mayim normalmente significa água. Mas o rabino Maimônides, que também é considerado no Judaísmo uma autoridade em Talmude, diz que nas declarações originais de criação, a palavra Mayim também pode significar os "blocos de construção do universo".

Outro exemplo: Gênesis 1:5, que diz: ". “E foi tarde e foi manhã, dia um.” Esta é a primeira vez que um dia é quantificado: noite e manhã . Nachmânides discute o significado de noite e de manhã . Será que isso significa pôr do sol e o nascer do sol? É o que parece, um dia de 24 horas com manhã e entardecer. Mas Nachmânides aponta um problema com isso . O texto diz que “E foi tarde e foi manhã, dia um.”[...] Tarde e manhã, dia dois [...] Tarde e manhã o dia três. Em seguida, no quarto dia, é que o Sol é mencionado. Nachmânides diz que qualquer leitor inteligente pode ver um problema óbvio: como temos um conceito de noite e de manhã para os primeiros três dias , se o sol só é mencionado só no quarto dia?

Nachmânides diz que o texto de Gênesis em hebraico usa as palavras Vayehi Erev - "Foi a tarde ", mas isso não significa exatamente "Foi a tarde"... Ele explica que as letras hebraicas Ayin , Resh , Bet - a raiz de erev - é o caos . Mistura, desordem. É por isso que à noite é chamado de "erev" , porque quando o sol se põe , a visão fica embaçada . O significado literal é “havia desordem.” A palavra na Torah para "manhã" - Boker - é o oposto absoluto. Quando o sol nasce, o mundo torna-se bikoret, ordenada, capaz de ser discernido. É por isso que o sol não precisa ser mencionado até o dia quatro. Porque a partir Erev (Tarde) para Boker (Manhã) é um fluxo da desordem à ordem. Esse é um dos motivos para os Dias da Criação serem entendidos como "Dias no tempo de Deus". E sobre essa questão da ordem vindo após a desordem, ainda por cima, tem um paralelo bastante curioso com alguns fatos da ciência, mas isso veremos mais adiante.

Para completar ainda, há o fato de que no Livro de Daniel, mais especificamente no capítulo 8 versículo 14, vemos a menção de 2300 dias proféticos - assumidos como não literais, uma vez que foram revelados em visão ao profeta e referem-se ao fim dos tempos - e eles são designados por "tardes e manhãs", exatamente como os dias de Gênesis 1! Alguns estudiosos, em oposição a isso, afirmam que essas ”tardes e manhãs" de Daniel 8:14 referem-se ao sacrifício diário, oferecido no Templo de Jerusalém, toda manhã e toda tarde... mas o problema é que o texto original do hebraico não suporta essa interpretação, conforme pode ser visto nesse link. Assim sendo, esse acaba sendo mais um indicativo de que os Dias de Gênesis 1 são realmente de um "relógio diferente do nosso", visto que possuem a mesma estrutura descritiva dos dias proféticos de Daniel 8:14.

Luz de Gênesis 1

A propósito, cabe também aqui a seguinte pergunta: como poderia haver luz antes do sol, visto que ele teria sido criado no quarto dia? Alguns argumentam que a luz do primeiro dia era apenas uma luz cósmica ou luz proveniente de Deus. Mas temos também uma outra explicação que leva em conta os termos no hebraico original do texto. No primeiro dia, usou-se a expressão: “Haja luz”. A palavra hebraica para “luz” ali é ʼohr, significando luz em sentido geral. Mas, no quarto dia, porém, a palavra hebraica muda para ma·ʼóhr, que se refere a um luzeiro ou fonte de luz.Em Gênesis 1:16, no dia quarto, não se usa o verbo hebraico ba·ráʼ, que significa “criar”. Antes, emprega-se o verbo hebraico ʽa·sáh, que significa “fazer”. Visto que o sol, a lua e as estrelas estão incluídos nos “céus” mencionados em Gênesis 1:1, eles foram criados no primeiro dia. Acredita-se que atmosfera ainda estava sendo formada na separação das águas abaixo do céu e acima da terra no Dia Segundo (Gênesis 1:6-8). Em um dia nublado, com nuvens densas, por exemplo, não se consegue ver o sol, a lua e as estrelas. Assim era até o quarto dia; a partir daí houve a dissipação da neblina e os luminares, que já existiam desde o primeiro dia, se fizeram visíveis da Terra. Portanto, no quarto dia, eles não estão sendo criados, mas apenas se fazendo visíveis da terra. Quando se diz: “Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra” (Gênesis 1:17), isso indica que se tornaram, então, visíveis da superfície da terra, designados por Deus com a ideia de no final das contas funcionarem como indicadores de tempo (Gênesis 1:14) para os observadores terrestres. É aí que o Kronos é estabelecido.

Dias divinos - e análogos aos nossos dias

Mas voltemos à questão dos Dias da Criação. Nós sabemos que cada dia da criação é numerado. No entanto, há uma descontinuidade na forma como os dias estão contados, no original hebraico. O versículo diz : “E foi tarde e foi manhã, dia um.” Mas no segundo dia não se diz: "tarde e manhã , dia dois." Em vez disso, o texto diz que "tarde e manhã, dia segundo." E a Torah continua com este padrão: "E foi tarde e foi manhã, o dia terceiro [...] dia quarto [..] dia quinto [...] dia sexto". Somente no primeiro dia que o texto usa uma forma diferente, não "o dia primeiro", mas "Dia Um" (Yom Echad ).

Muitas traduções bíblicas cometem o erro de escrever "primeiro dia" ou "dia primeiro", isso porque os editores querem que as coisas sejam agradáveis e consistentes. Mas isso acaba jogando fora a mensagem cósmica no texto! Porque há uma diferença qualitativa, como diz Nachmânides, entre "um" e "primeiro". "Um é absoluto , primeiro é comparativo”.

Nachmânides explica que no Dia Um, o tempo - Kronos - foi criado. Isso é uma visão fenomenal. Oitocentos anos atrás, Nachmânides alcançou essa percepção do uso dessa frase na Torá sobre a frase, "Dia Um". E isso é exatamente o que Einstein nos ensinou nas leis da relatividade: a de que houve uma criação, não apenas do espaço e da matéria, mas do próprio tempo. Porém, como vimos anteriormente, somente se estabelece a contagem de tempo em dias de 24 horas com o surgimento do sol e da lua no céu, no dia quarto.

Apesar de termos essas pistas, que indicam de fato uma percepção diferente em torno dos Dias da Criação, será que ainda temos mais indicativos de que os Dias da Criação eram entendidos como "24 horas no tempo de Deus"?

Vamos olhar um pouco mais a fundo. As fontes judaicas clássicas dizem que antes do início, nós realmente não sabemos o que havia. Nós não podemos dizer que antecede o universo. O Midrash faz a pergunta: Por que a Bíblia começa com a letra Beit? Porque Beit - (que é escrita como um C ao contrário - ב) é fechado em todos os sentidos e aberto somente na direção para frente (detalge: a escrita do idioma hebraico é lido da direta para a esquerda). Por isso não podemos saber o que vem antes, só o que vem depois. A primeira letra é um Beit - Fechado em todas as direções e somente abertos na frente. Nachmânides expande a declaração. Ele diz que, embora os dias são basicamente de 24 horas cada um , eles contêm kol yemot ha-olam - todas as idades e todos os segredos do mundo. (curiosamente a descrição que Nachmânides faz a respeito da criação do tempo e da matéria se assemelha de perto a famosa Teoria do Big Bang, mas vamos deixar isso para outro artigo).

Então, se Deus é quem estabeleceu esses dias, não estando eles sujeitos à criação do tempo - e o "primeiro dia" apontando para um "princípio absoluto do Kronos", cuja contagem só é estabelecida no dia quarto com o Sol e a lua - e o texto realmente traz o sentido de 24 horas, fica bastante claro que os Dias da Criação trabalham com a relatividade temporal, onde no caso as "24 horas em Kairós" representariam outra medida de tempo em Kronos. Seriam como "versões gigantes" dos dias de 24 horas, tendo inclusive "tardes e manhãs" com similaridade literária de um dia comum. Os Dias da Criação eram "Dias úteis de Deus".

Explicando melhor: A Torah diz que a idade do universo é de seis dias. O tempo da criação até Adão, seis dias. Entretanto, esses 6 dias eram na perspectiva humana? Afinal, mesmo no Kronos o tempo é relativo. Um dia de 24 horas, em outro lugar do espaço, pode durar segundos ou milhares de anos, de acordo com a lei da relatividade. Quanto mais no Kairós! Então, podemos considerar que os Dias da Criação eram "Dias divinos".

Para complementar, isso ainda fica muito mais evidente quando olhamos para o "Sétimo dia". A ausência do refrão "E houve tarde e manhã" na parte que corresponde ao Dia Sétimo é mais facilmente explicada como que indicando que este "dia" não terminou (e João 5:17; Hebreus 4: 3-11 parece tomar isso como garantido), portanto, este não é um dia "normal" também. A questão da observância do Sábado também fica clara quando tomamos os Dias da Criação como análogos, mas não idênticos, aos dias de 24 horas em Kronos. No caso, Êxodo 20:8-11 faz uma analogia entre o nosso trabalho e descanso de Deus (e curiosamente, as únicas vezes que vemos a menção dos seis dias da Criação é exatamente nesse contexto de analogia com a jornada de trabalho dos hebreus no Pentateuco, em mais nenhuma outra passagem da Bíblia há menção dos Dias da Criação).

No final das contas, podemos ver que a visão judaica original a respeito dos Dias da Criação se aproxima mais da chamada "teoria dos dias análogos", sugerida por William Shedd em 1988, e que também traz similaridades com as visões de antigos cristãos, como Anselmo e Agostinho de Hipona. Essa visão é interessante porque permite uma interpretação literal do termo "Dia" em Gênesis 1 - como o Criacionismo da Terra Jovem - mas permite também longos períodos de tempo para cada "Dia Divino" - o que o caracteriza como um tipo de Criacionismo da Terra Antiga e, consequentemente, não bate de frente com a ciência que vem estudando as eras geológicas, conhecida como geocronologia (não confundir com "evolucionismo"). E é exatamente o que veremos a seguir.

A analogia entre a Pré-História e Gênesis 1

Mais surpreendente ainda do que conhecer qual é a verdadeira visão que os primeiros receptores da mensagem do Gênesis tinham acerca dessa passagem é, na verdade, ver como essa visão tem uma analogia muito curiosa com o que a geocronologia (ciência que estuda a idade das rochas) e a paleontologia (ciência que estuda os organismos extintos do nosso planeta) têm descrito acerca dos eventos que se desenrolaram em nosso planeta. A "coincidência" é tanta, como iremos ver, que fica difícil dizer que é "mera coincidência", principalmente quando comparamos o relato de Gênesis com outras "histórias da Criação" contadas por outros povos.

Basicamente, se tomarmos a visão de que o relato é bem resumido embora narre algo muito mais fantástico de que aparenta, podemos listar 10 estágios da Criação que ocorreram ao longo dos 6 Dias Divinos, em ordem: (1) um princípio; (2) uma terra primitiva em trevas, e envolta em pesados gases e em água; (3) a luz; (4) uma expansão ou atmosfera; (5) grandes áreas de terra seca; (6) plantas terrestres; (7) sol, lua e estrelas, tornando-se discerníveis na expansão, e o início das estações; (8) monstros marinhos, répteis povoando as águas* e criaturas voadoras; (9) animais selváticos e domésticos, mamíferos; (10) o homem. E sabe o que é mais surpreendente? Essa é a ordem dos eventos que aconteceram ao longo do tempo geológico segundo a ciência! Podemos dizer que os estágios 1, 2, 3, 4 e 5 remontam à Era Pré-Cambriana; os estágios 6 e 7 à Era Paleozoica, o estágio 8 à Era Mesozoica, e os estágios 9 e 10 à Era Cenozoica! Curioso, não?

Mas, uma pergunta interessante é: quais são as probabilidades de o escritor de Gênesis ter apenas adivinhado esta ordem? As mesmas que o leitor teria de retirar duma caixa, ao acaso, os números de 1 a 10, em ordem consecutiva. As probabilidades de conseguir isso na primeira tentativa são de 1 em 3.628.800! Assim, é deveras estranho dizer que o escritor simplesmente alistou, por acaso, os eventos precedentes na ordem certa, sem obter tais fatos de algum lugar... Mas de onde ele poderia ter retirado esses eventos se estamos falando da paleontologia e da geocronologia, que são ciências relativamente recentes? Todo o conhecimento dos sábios do Egito não poderia ter fornecido a Moisés, escritor de Gênesis, qualquer indício do processo da criação. Os mitos dos povos antigos, relativos à criação, não apresentavam nenhuma semelhança com aquilo que Moisés escreveu em Gênesis (os mitos de criação dos outros povos são caracterizados pelo politeísmo e pelas lutas entre deidades visando a supremacia). Isso certamente abre até margem para a ideia de uma inspiração divina no texto (embora, claro, possa também ser uma coincidência, no mínimo, bizarra).

Observe que essa comparação - da pré-história com Gênesis 1 - não foi feita com o objetivo de encaixar quaisquer relato científico em Gênesis (até porque, como mostramos em todo o estudo, a noção dos Dias da Criação como sendo "dias divinos" é algo concebido muito antes de qualquer fóssil ter sido catalogado ou artigo científico) mas sim de mostrar que existe uma relação muito curiosa a respeito do que está na Bíblia e o que a ciência diz, de modo que as descobertas científicas em torno da idade da terra e dos fósseis não contradizem o que está na Bíblia, ao menos em seu sentido original**. Como certa vez o dr. Adauto Lourenço diz - e embora ele seja defensor da teoria da terra jovem nisto havemos concordar com ele, "toda ciência devidamente estabelecida e toda Bíblia corretamente interpretada nunca entrarão em contradição".

Essa questão é fundamental?

Por fim, veremos agora a respeito de uma pergunta interessante: será que a questão da duração dos Dias da Criação é algo fundamental à fé cristã?

A grande maioria dos Criacionistas da Terra Jovem - que colocam os dias de Gênesis como de 24 horas em "Kronos" - é enfática em dizer que sim, é algo fundamental. Argumentam que negar a temporalidade fixa de 24 horas dos dias da Criação, ou negar que a Terra tenha poucos milhares de anos, abre as portas para o evolucionismo e materialismo. No entanto, cabe lembrar que até mesmo o judaísmo antigo não interpretava os dias da criação como esse grupo de criacionistas interpreta.

A questão é que, se de fato fosse algo fundamental ao cristianismo, os seis dias da Criação seriam mencionados em algum lugar no Novo Testamento, pois o Novo Testamento traz o sentido do Antigo Testamento de acordo com o Cristianismo, ou seja, pelo Novo Testamento podemos saber o que é fundamental à fé cristã e o que não é. E vemos muitos detalhes do Gênesis que não só são enfatizados no Novo Testamento, mas são assumidos como fundamentais, como o pecado original de Adão e Eva, por exemplo. Porém, não vemos nada remetendo aos Dias da Criação. Ou seja, o relato de Gênesis é tido como histórico pelo Novo Testamento, mas ele sequer aborda a questão que diz respeito ao tempo em que tais eventos ocorreram. O próprio Senhor Jesus jamais tocou nesse ponto, pelo contrário, apenas chama o tempo da criação de "princípio" (Marcos 10:6), mas sem apontar o tempo em que os eventos de criação ocorreram. E também, como já foi dito, só vemos a menção aos Dias de Gênesis em Êxodo e Deuteronômio, e ainda no contexto da guarda do sábado.

Para entendermos melhor, o site "estudosdabiblia.net" listou os principais fundamentos da doutrina da Criação que são fundamentais ao cristianismo, e resumidamente, eles são:

- A criação prova o poder da palavra de Deus.

- A criação prova que Deus é a fonte viva de toda vida.

- A criação prova a existência eterna de Deus.

- Deus viverá eternamente, após a destruição da criação.

- A criação prova a sabedoria sem limites de Deus.

- A criação prova o poder sem limites de Deus.

- A criação prova o direito de Deus de controlar o universo.

- A criação prova o direito de Deus de ser adorado.

- A criação prova que Deus é Deus

Onde a questão da idade da Terra e da duração dos dias da criação entra nesses tópicos? Em nenhum, justamente por não ser algo relevante para a salvação. Jesus coloca como necessária para a salvação do crente a aceitação de seu sacrifício na cruz, a aceitação de Deus e de Sua Palavra. Mas em lugar nenhum está escrito "se fores criacionista da terra jovem serás salvo".

Isso não quer dizer que o estudo em torno dos Dias da Criação é algo repugnante, pois como vimos nesse artigo, essa questão é deveras interessante. Mas temos que tomar cuidado para que isto não gere alguma doutrina fundamentalista que é "fora da Bíblia", e que gere divisão na igreja***. A fé da pessoa deve ser baseada na sua intimidade com Deus, meditação da palavra, atitudes, etc, e não pela sua concepção acerca da idade do nosso planeta. Respeitar as visões diferentes em torno de uma questão como os Dias da Criação, sendo assim é mais do que fundamental.

* O texto bíblico em Genesis 1:20 e 21 descreve a criação de répteis marinhos que povoavam as águas em abundãncia (em enxames). O termo hebraico romeseth nesse trecho significa literalmente “deslizar ou rastejar”. Alguns comentaristas dizem que esse termo pode se referir a peixes e todas as outras criaturas marinhas no geral, embora não seja o que , literalmente, o texto diz. Independente disso, é claro que o texto indica um florescer descomunal da vida marinha no dia quinto.

** Pode-se ainda argumentar a respeito da seguinte questão: se foi o pecado de Adão que trouxe a morte ao mundo, como dezenas de espécies pré-históricas teriam nascido e morrido em milhões de anos antes do homem? Esse argumento é usado incessantemente por Criacionistas da Terra Jovem. Embora esse seja um assunto para outro artigo, recomendamos os seguintes links, que esclarece muito bem a questão: http://www.respondi.com.br/2010/04/existia-morte-antes-da-queda-do-homem.html e http://genesisum.blogspot.com.br/2010/11/o-predatismo-e-o-genesis-parte-1.html

*** Constantemente, os defensores do Criacionismo da Terra Jovem têm agido dessa forma. Marcos Eberlin, bioquímico batista da Unicamp, por exemplo, chegou a chamar as formas conhecidas como "evolucionismo teísta" de "´péssima teologia unida a "péssima ciência" (curiosamente, a ala "científica" do criacionismo da Terra Jovem é uma das mais fraudulentas da história, mas deixaremos isso para outro tópico).

Fontes:

Posts Em Destaque
Verifique em breve
Assim que novos posts forem publicados, você poderá vê-los aqui.
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Nenhum tag.
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page